Minha palavra é noite,
às vezes é lua cheia,
às vezes minguante
-quase nunca nova
 

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    PITELO E A PROPOSTA 

    Welis Couto

                Nunca o vira antes tão alvissareiro. Perdera aquele costumeiro ar macambuzio e tinha a displicente alegria comum dos homens. Abriu as janelas de sua casa e limpou o pó das cortinas, enquanto observava os sandeus passarem na rua. A tudo contemplava.

                Na sala, o jornal do dia com as mesmas ideias do mês passado. O pó dos móveis sumira. Ficara, apenas, uma indomável vontade de pisar o chão, descalço, sem sujar os pés. Apenas o pó dos móveis sumira. A televisão dava a notícia de última hora. Desligou-a e foi ver as rolinhas catarem restos de fubá espalhados pelo quintal.

                Pitelo deitou-se na rede entre os laranjais e assumiu o ar benevolente das piabinhas. Olhou para as ervas na copa da mangueira e plantou um pé de esperança ao lado da bananeira. Era outono e este se abria, na mansidão das tardes, no fogo brilhante que adviria em maio.

                Surpreendeu-me o remanso de Pitelo e pus-me a observá-lo, Era, aparentemente, o mesmo. Conservava as velhas roscas gastas que tão bem o caracterizavam. Interiormente nada mudara. Apenas as aparências desenrijaram a máscara parafusal de Pitelo. Pareceu-me, primeiramente, um homem e aborrecidamente, se portava como tal na doce irresponsabilidade que tão bem caracterizava o ser. Seus olhos perderam o brilho metálico. A voz era pausada e rouca.

                Ele não me disse palavra inteligível. No entanto, após muito matutar, encontrei ao seu lado o fator de toda a mudança. No bolso da calça ele trazia um imenso livro que parecia contar o esboço de uma proposta para um Brasil ideal. Folheei-o cuidadosamente. Estava em branco. Tão em branco igual se reduziram as ideias de Pitelo num convite ao bem viver, enquanto se busca o esboço de alguma coisa que sugere ser de muita seriedade.


     

    Pitelo e a Cachoeira
    Welis Couto

             Ele ficou ali parado, embasbacado, olhando a névoa d’água salpicar-lhe o rosto, ainda que estivesse a boa distância da cachoeira. Ao longe, ela era um filete d’água despencado da imensa altura.

           O Parque Municipal do Itiquira localizado no Município de Formosa (GO) fica há pouco mais de 100 km de Brasília. Possui a maior queda livre acessível do País em seus 168m de altura, - informações que Pitelo lera nos livros -. O clima no lugar é de tranquilidade, uma fuga do cansaço diário.

           Pitelo ia tecendo na imaginação, o que haveria por traz da cachoeira. Como será que ela se formava? – Pensava consigo mesmo. - Possivelmente surgira de algum delta. Ou será que a cachoeira provocaria um delta?

           Cachoeira tem seu limite. Cresce brilhante. Avoluma-se aos olhos, grandiosa. Arrebanha admiradores. Entretanto, o fio d’água que a forma está cada vez mais próximo do chão, do fim, da queda inevitável. Depois, o rastejar do rio, insignificante, diminuto e isolado, em anonimato. Perder a forma e o nome ao desembocar em outro rio. Engolido pelo rio maior até se perder no mar em sentença de morte. Renascer, talvez, em água de chuva formando outro rio sem curva, sem delta, sem cachoeira. Ter vida breve e insignificante, serpenteando pelos gerais para servir de bebida aos bois.

           Cachoeira que se preza não quer cair. Ela resiste e voa para o alto numa tentativa solene de subir novamente a corredeira e eternizar-se. A névoa é a cachoeira em fuga da queda, no caminho para cima. Mas, o vento que nada tem com essa história, sopra-a para o lado e ela se desfaz molhando nossos rostos.

           Pitelo maquinava seus pensamentos. Entre uma pausa e outra me contara que, certa feita, ouvira falar de uma cachoeira, ou seria gente? Tinha nome metade de gente, metade de coisas inanimadas, ou animadas até demais. No estrangeiro, chamavam-lhe de Little Charles Waterfall. Ele queria ser cachoeira perene formada em vários deltas. Cachoeira grande, eternizada. A queda amparada para o alto a demonstrar nessas torres de água, o inefável.

           Um dia Little Charles Waterfall viu fecharem suas comportas em uma ação do Governo de desvio do rio para irrigar plantações nos sertões distantes. O caminho do rio sem água mostrava seus sulcos, a terra cortada, esburacada e enrugada. O leito do rio nu abria suas entranhas enegrecidas, construídas de limo e barro podres, que o esplendor da cachoeira escondia.

           Pitelo olhou novamente para a cachoeira do Itiquira à sua frente e virou-se para mim. Os olhos brilhantes! Sentenciou:

           - Quanto mais alto a cachoeira, maior a queda.


     

    PITELO E A ESPLANADA
    Welis Couto


    Ele estava ali na Esplanada dos Ministérios, depois de ter passado há alguns dias pelo Parque da Cidade e, de lá, acompanhado a organização da Marcha das Margaridas.

               Dias Passados e agora o 7 de Setembro, independência do Brasil. Dependência do Brasil de cidadãos honestos... Estes, longe, muito longe, estão do poder. – Concluiu.

              Pitelo relembra as Margaridas. Motivos tantos. Mulheres motivadas para a marcha. Marcas do tempo no rosto, marcas do intento. Outras, marcas da beleza... camponesa. Mãos calejadas do roçado. Outras, nem tanto! Mãos arejadas que recebem recado de serem amadas.

             Setenta mil mulheres deixam o parque e ganham a Esplanada multicolorida. Chapéus enfeitados, rostos enfeitados... Olhos ansiosos molham a pele que transpira a secura de Brasília.

             Pitelo, com seu olhar metálico está atento a tudo. Inicialmente, até pensou que as margaridas fossem outra coisa multifacetada. Descobriu depois que essas mulheres precisam de multifaces para viver, trabalhar, sorrir e amar.

             A marcha pode não ter resolvido o problema das Margaridas. Mas, levaram para o palanque, o Governador de Brasília em terno impecável e a Presidente do Brasil, com chapéu de palha camponês, em discurso florido para as Margaridas de rostos cansados e renascidos.

             Isso foi há alguns dias. Neste 7 de Setembro, Pitelo estava novamente lá, na Esplanada, com seu sentimento cívico.Ele sente o seu olhar turvar-se e a boca ranger na secura da estação. Colocou fita verde e amarela na cabeça, guarda sol debaixo do braço, buscou um lugarzinho o mais confortável que pode, nas arquibancadas e, pacientemente, esperou pelo início do desfile. O General se aproximou do palanque da Presidente e solicitou permissão para iniciar o desfile. Pitelo sentiu o orgulho nacionalista encher-lhe o peito, ao mesmo tempo em que ouviu, ao longe, gritos organizados e contundentes.

             Aguardou paciente e euforicamente o transcorrer do desfile. Enquanto a Esquadrilha da Fumaça desenhava a Catedral de Brasília nos céus embranquecidos, ele seguia em direção àqueles gritos que ouvira anteriormente. Um imenso mar negro na solidão do ar de Brasília surgiu à sua frente. Milhares de pessoas com roupas escuras pediam o fim da corrupção. Algumas, os rostos pintados, tinham.

              Pitelo ainda não tinha se reacostumado com o seu retorno. Aqueles jovens de roupas negras decididos e fortes em seus ideais lubrificaram seus olhos. Mas, o corpo ainda rangeu o metal seco, quais os atos dos congressistas.


             Relembrou a era Collor quando, ele mesmo ali estivera, pintara o rosto
    no ardor da juventude, lutara por —dias melhores e pela desejada honestidade que deveria haver nas pessoas. Entristeceu! Seus atos teriam sido em vão, ou é o tempo que reescrevia um pedaço perdido da história?



    O Retorno de Pitelo

    Welis Couto

    Há muito não passeava por esta praça. Andava sem motivos desde aquele setembro em que as brumas cobriram meus olhos, ainda que o dia fosse de um sol morno. Não queria recobrar o passado, mas recomeçar o presente.

               Tempo é passado. A Lanchonete 2001, que marcara época nos anos 1970 e 80 talvez não imaginasse que sobreviveria àquelas décadas. Se fosse criada hoje, possivelmente dariam a ela o nome de Lanchonete 2021 ou 2051. O banco em que eu me sentava certamente era o mesmo em que estava naquele setembro cinzento...

     Libertava-me! Queria gritar para o mundo, mas quem me daria atenção? Pus-me a caminhar. Um pouco à frente, o Colégio Cândido Gomes, onde todo alvinopolense faz seus estudos secundários. No muro, homenagem a grandes escritores locais, dentre eles José Afrânio Moreira Duarte, moderno mecenas e o próprio Cândido Gomes. Se lhe tivessem dado tempo, certamente o nome de Pitelo também estaria estampado naquele muro.

     A Rua de Cima fica logo depois do colégio. Fico rindo para mim mesmo ao vê-la: caminho para a Igreja Matriz, para a cidade velha, para as casas velhas de frestas nas janelas que entreabrem o corpo de jovens em pudor. Pitelo teria uma descrição mais poética para as meninas de corpos transparentes revelados pelas frestas das janelas. Eu, não! Eu tenho apenas os olhos molhados em quentume de recordança.

      O passado é a sombra que se inverte ao meio dia, dissera-me, certa vez, Pitelo. Olho o relógio sem por quê. Passa de 12hs. O passado é a sombra que se inverte ao meio dia. Estou pronto!

    Volto para a praça e sento-me em um de seus bancos. Vou sorrindo para mim mesmo, largamente.

     - O sorriso é o despudor da alma. – Ouço voz ao meu lado! – “E a minha alma alegra-se com seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão”, dissera Fernando Pessoa. - Continuou.

     Olho em volta. Tenho visões e busco abafá-las. Fecho os olhos e volto a abri-los. As visões permanecem. Por mais um instante, desafio o imaginário e sinto a inquietação do solitário interlocutor. Pitelo está sentado ao meu lado. Como peixe que brota da água, ele ganha a forma de antes. O tempo que passara não lhe enferrujara o metal, nem lhe corroera as juntas. Era o mesmo! Vendo-me confuso, ele vai-se explicando.

     - Estamos completos quando não precisamos mais um do outro. Fazemos o que dita o mundo. O passeio pelas ruas do passado e a recordança sem penar foram sinais suficientes de que está pronto para ser livre. Isso também me libertou! Por isso, voltei.

     - E por onde andou todos esses anos?

     Sei que não me responderá. Seus olhos sem lubrificante fitaram-me como a dizer: corria mundo enquanto o passado tecia sua teia na sombra que se inverteria ao meio dia.

     O que isso importa? Pitelo está aqui, ao meu lado. Apenas o pensamento ensimesmante se transforma em pluma, bruma, nuvem. Levanto-me e ele me segue, o metal pesado rangendo como antes. O passado é a sombra que se inverte ao meio dia! Estou certo disso.