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Minha palavra é noite,
às vezes é lua cheia,
às vezes minguante
-quase nunca nova
 
 

 

INFÂNCIA

Prêmio de literatura "Zé de Chico" - Alvinópolis/MG

Welis Couto

Logo que escurecia, minha mãe trancava todas as janelas e fechava bem a porta, colocando o ferrolho, que ela movimentava com a força de Deus para o seu lugar. Assim que era chegada a visita da noite, tremendamente escura, eu só conseguia ouvir o coaxar dos sapos lá no brejo, quebrando o silêncio. Ao longe, vinham os gritos da coruja, arrepiantes. Eu me escondia, trêmulo, por entre os ternos braços de minha mãe.

Minha mãe, meu pai, eu e uma tia mais velha que morava em nossa casa, era toda a minha família. Papai saía constantemente e só chegava tarde da noite. Havia também um gato na família, com os olhos esbugalhados. Quando fazia noite, então, aqueles olhões verdes brilhavam muito mais que a frouxa luz da lamparina em cima do fogão. Eu odiava os gatos. Minha tia amava-os. Eu odiava minha tia por amar os gatos. Aquele bichano merecia dela maiores atenções do que eu. Enciumava-me. Não perdia vez de dar-lhe uma pisada no rabo peludo e curvado.

Quando o meu pai chegava tarde da noite, mamãe abria a janela e ficava a observá-lo desarrear o cavalo. Eu não! Eu ia, encolhidinho, levar o milho para o animal. Tremia mais que a noite com o vento brincando no vazio. A recompensa vinha depois. Os meus pais sentavam pertinho do fogão e puxavam a brasa para junto da pata, aquecendo a cozinha. Eu sentava entre eles e mamãe trazia o prato de feijão tropeiro com ovo que ela preparava com esmero e colocava-o na trempe de trás do fogão à espera do papai. Meus olhos cresciam que davam inveja àquele bichano nojento, ali, agarrado à saia da tia. Carinhosamente, meu pai colocava um bocado de feijão com ovo em minha mão e eu comia feliz da vida. Mas, aquele bichano incomodava, dava asco na boca; os olhos reluzindo ao fusco da cozinha. Minha tia dava-lhe banho, o que lustrava ainda mais o seu couro peludo. Enojava-me.

            Todas as noites eu dormia com aquele asco na boca. Amaldiçoava o bicho!

Comia o meu bocadinho e pedia a bênção aos meus pais. Ia para a cama, não sem antes dar uma olhadela para aquele bicho feio de lembrança da noite. A lamparina dos seus olhos brilhava como vaga-lume nos pastos, junto com as corujas e todos os bichos do sem sol.

            Deitava com o gato habitando a minha cabeça. Os meus pais continuavam sentados em frente ao fogão. Ouvia, de quando em quando, os seus sussurros. O radinho a pilha, na sala, soava a "Voz do Brasil". Aquele gato... amaldiçoava-o e adormecia.

Assim eram todas as noites, até que um dia, acordei de manhã, cedinho, com os gritos desesperados de minha tia. Ela gritava tanto que espantava as andorinhas do telhado da casa. Gritava, esperneava qual uma louca, chorava! Só mais tarde vim a saber; o bichano tinha morrido. Amanhecera morto.

Levantei-me devagarinho e fiquei, contrito, a observá-la. Dava pena na gente, que senti uma picadinha de tristeza e remorso em minha alma pequenina.

No fundo, bem lá no fundo, eu tinha um coração bom. Confesso-lhe que me senti culpado pelo desespero de minha tia. Tentei contornar tudo e resolver aquela situação de penúria, para remediar seu sofrimento.

Ajoelhei-me em frente a uma imagem de São José que minha mãe me deu quando eu fiz cinco anos e, então, ensinou-me a rezar todas as noites, antes de dormir. Ajoelhei-me, e com minha fé de criança, pedi-lhe que não a deixasse sofrer mais. Ela era tão boazinha! Pedi-lhe que se fosse necessário trazer o bichano de volta para que acabasse o sofrimento dela, que o trouxesse. Fiz-lhe pedidos tantos para a felicidade de minha tia e prometi-lhe não mais maltratar os gatos.

            Rezei tanto e com tamanha fé que um dia o milagre veio. Ah!... o maldito milagre. A casa se encheu de pequeninos gatinhos amarelos, brancos e rajados, de toda espécie, e minha tia, imensamente feliz, a carregá-los no colo e esquentando o leitinho deles no caneco com asa. Aqueles gatinhos fizeram-na esquecer o bichano feio e peludo.

No entanto, uma coisa eu não podia entender. Não conseguia inteirar-me da tamanha força de meu pedido. Só, então, depois de muito matutar, veio-me a inconsolável verdade: - Aquele gato era, na verdade, uma gata, e antes de morrer havia deixado a sua ninhada.

A partir de então, nunca mais amaldiçoei os gatos. Pois, aprendi que, de alguma forma, eles possuem sete vidas.

 

(COUTO, Welis. In "Memórias de um Parafuso". Editora Arte Quintal. Belo Horizonte)