Topo.      
 
Minha palavra é noite,
às vezes é lua cheia,
às vezes minguante
-quase nunca nova
 
 

                                                               CONVERSA DE BAIANO           

Prêmio de literatura "Concurso Literário de João Monlevade" (MG)

                                                                                Welis Couto

          

           O ônibus foi roncando majestosamente. O motorista, cansado e um pouco irritado com os passageiros, ajeita os óculos de sol, de terceira categoria, por cima do nariz e faz o veículo diminuir a marcha, até parar perto dos passageiros que lhe acenam na beirada do caminho.
            Uma escadinha de meninos vai trepando pelos degraus do ônibus; seguidos daquela que parece ser a mãe. Com os pescoços estendidos, procuram lugares dentro do veículo.
            - Dona Inhefina! A senhora?!
            - Seu João! Mesma eu, nessa peleja.
            O senhor se ajeita na poltrona para que ela se sente ao seu lado, enquanto os pirralhos vão-se acomodando como podem.
            - Eta condução custosa, hein sô? Parecia que tava emperrada no caminho.
            - Tem razão "Inhefa". Tá delatando muito. E o Mané?
            - Tá em Itajimirim. Trabalhando na serra.
            - Quer mais saber de cacau?
            Quer não, sô. Tá dureza a vida e lá ganha mais, apesar do perigo. Imagina o senhor que ele falou pra eu que tá ganhando bem; mas trabalha mais que boi na canga...
            - Dinheiro num tá fácil, Inhefa, num tá! Vê se pode: quatrocentos contos eu gastei pra Barrolândia.
            - Só de ida?
            - Só de ida. Parece até traquinagem.
            - O Mané tá lá dando duro. Mas é perigoso, sô. O Zé de Ana também foi pra lá. Na primeira semana, cortou dois dedo na serra; num sei se é do pé ou da mão; sei não; mas que foi dois dedo, foi. Cá pra eu: ainda tenho os dois menino que ajuda. É! Os dois mais velho já ajuda. Senão a gente se estrumbicava. O maiorzim já ganha quatro mil por semana, mas tem que pagar tudo lá na cidade...
            - Mas, tô estranhando, Inhefa. O Zé de Ana foi querer trabalho?
            - Virge!...
            - É traquinagem, Inhefina. O Zé de Ana é um malandrão; num quer nada com a dureza. Só quer saber de paquerar e viver enrabichado.
            - Sacana!
            - Que foi Inhefa?
            - O Zé de Ana... É mesmo um perdidão!
            - Cumé que pode mulher gostar de um homem daquele, sô!
            - É, Cumé que pode!
            - Desassuntando, Inhefa. E a Maria?
            - Virge! Arrumou uma doença que sabe lá Deus. Depois que o Tonhão morreu, ela nunca mais foi a mesma. Tá lá, capengando.
            - Isso é falta de rabicho!
            - Traquina não, homem! Sabe lá Deus...
            - Voltando pro Zé de Ana, sabia que ele vendeu a casa da mulher?
            - Aquele bandido!? Que atrevido! Enrabichou com aquela viúva arrumada e vai botando tudo fora, assim, assim.
            - Como é que uma mulher pode gostar de um homem daquele, sô! - continuou o Seu João - O bichim nunca trabalhou na vida dele.
            - É! Parece que ele tem cacau na língua.
            - Só mesmo. Vou ficando eu por cá, Inhefa.
            - Tá chegando, né, Seu João. Eu vou mais pra riba. Até Gabiana.
            - Vai com Deus, Inhefa, e até mais ver.
            - Até! Lembranças à patroa.
            Assim que Seu João desceu, o ônibus seguiu viagem. Inhefina se ajeitou na poltrona, perto da janela, e puxou a cortina para afugentar o teimoso sol da tarde que cismava em ficar. Recostou esquecidamente na poltrona e continuou viagem dentro de si mesma.
            - Zé de Ana! - suspirou. - Cumé que se pode enrabichar por um homem daqueles. Cumé?
            Lembrou das noitadas na fazenda, as festas de São João e lá estava o mancebo, sacudindo as mulheres na dança, rodopiando-as tanto que lhes apareciam as calcinhas, rodando para lá e para cá. Sacolejando.
            Todas lá, grunhindo por ele: Maria, Ana, Inhefina... uma infinidade.
            Até que certa feita ele virou o olho pra Ana, uma viuvona bem de vida e da pá virada, como diziam na região. Enrabichou-se e deixou a mulherada toda cheia de inveja.
            Inhefina respirou de novo. Abriu uma fresta na cortina e se reacomodou na poltrona. Em seguida se encolheu toda, como que a se recriminar por algum ato descabido. No entanto, simplesmente deixou escapar uma surda exclamação, enquanto, alheio a tudo, o motorista fazia o carro seguir viagem.
            - "Virge!"

                            *******

(COUTO, Welis. In "Memórias de um Parafuso". Editora Arte Quintal. Belo Horizonte)