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às vezes minguante
-quase nunca nova
 
 
 

MEMÓRIAS DE UM PARAFUSO

Prêmio da EscolaTécnica e Faculdades Oswaldo Cruz - São Paulo -SP

Welis Couto

      Véspera de fim de semana, depois de quase mês a cheio sem ver o sol, não podia ficar na cama até tarde. Por isto, levantei o mais cedo que consegui. É um desses dias em que a gente levanta, dá uma olhadela pro céu e diz maravilhado: que beleza! Assim eu fiz.

     Num dia desses é pecado ficar na cidade grande, mesmo não sendo ela lá muito grande, mas, Monlevade tem ares de cidade grande. Peguei o meu jeep 58 último modelo, na época, é claro; e rumei em direção a Alvinópolis. Antes, dei-me o cuidado de verificar toda a mecânica. Depois de todos esses anos...

     A estrada ainda estava vazia. Pareceu-me que o pessoal não estava lá pra essas coisas de céu claro, de dia bonito. Dirigi com tranquilidade, bem devagarinho, pra não perder nenhum detalhe. Em Rio Piracicaba tomei um bom copo de leite. Puxa! Só agora me lembrei, havia me esquecido do café da manhã. Segui com o meu 58 roncando majestosamente, assobiando.

     Minutos depois de passar por Caxambu, já não sei mais se é Caxambu ou Padre Pinto, mas vai assim mesmo, rodei alguns desconfiados quilômetros, quando ouvi uma vozinha. Parecia gritar, chorar, não sei... Parei o carro fora da estrada, e desci devagarinho, fechando a porta com cuidado pra não chamar a atenção, quando percebi que aquela voz saía de bem pertinho da terra, no meio da estrada. Encaminhei-me até ela e baixei o ouvido pra escutar direito.

     - Olá Seu Moço!

     Fiquei espantando quando vi que era um parafuso. Vendo meu embaraço, ele foi logo explicando:

     - Preocupa não, moço. Eu não faço mal a ninguém.

     Na verdade eu não estava preocupado, mas um parafuso falante... dá pra preocupar.

     - O que você está fazendo aí embaixo? - Perguntei.

     - Bem... - Sua voz era triste - Eu era um parafuso de caminhão.

     - E daí?

     Daí que num solavanco mais forte, eu não consegui mais segurar na menina que me prendia e estava fixa no chassis, então eu caí aqui.

     - Você está perdido?

     - Eu nunca me perco, moço. Viajei o mundo inteiro, passei estrada de buraco, tudo, meio mundo e meio.

     - Ele falou-me com um ar superior. Continuou.

     - Certa vez o meu dono deu uma batida, uma batida daquelas de arrepiar defunto, e eu não sofri nem um arranhão.

     - Puxa, você era forte mesmo, hein!

     Enquanto falávamos, passou por nós, um volks buzinando e levantando poeira, obrigando-me a saltar para um canto, pois não pretendia ser atropelado. Meu amiguinho tossiu engasgado.

     - Seu pilantra! Mas isso vai acabar.

     - Acabar, como? Só se chover.

     - Então você não viu aquele tantão de máquinas lá atrás?

     - Máquinas? - Indaguei.

     - É. Eu que vinha lá debaixo da carroceria, via tudo, e você aí, bem, confortável, não viu um bocado de tratores na pista?

     Só agora eu me lembrava. O meu amiguinho tinha razão. De quando em quando, eu tinha visto umas tabuletas escritas "devagar", "perigo", "pista estreita", "máquinas na pista".

     - Mas, como eu estava te falando, continuou o meu amiguinho, num solavanco muito forte, eu caí. O pior não é isto, já vi muitos ficarem pelo caminho. Mas o pior mesmo, é que eu estava preso a uma menina nova, cheirando a óleo, toda roliça, que se livrou de um mal-encarado que caiu na semana passada, e eu fui pro lugar dele. Eu estava de olho virado pra ela.

     - Estava namorando, seu parafuso? - Perguntei.

     - Eu! Quem?

     - Aquela porca, isto é, aquela menina.

     - Ah! A de óleo cheirando a novo? Mas aí eu me dei mal e caí aqui. Agora eu a estou imaginando... correndo mundo.

     Meu amiguinho se calou. Fui ao meu jeep para apanhar um pouco de água, e fiquei a observá-lo. Vi que ele estava triste. Escondeu o rosto pra que eu não o visse chorar. Depois, olhou pra mim, enxugando uma lágrima fugitiva. Queria me dizer qualquer coisa, acredito que a respeito de sua menina nova cheirando a óleo. Mas, eu só me lembro de uma grande máquina espirrando óleo, e de meu amiguinho já sem voz, se contorcendo e olhando pra mim. Depois jogaram um cascalho negro por cima. Era o asfalto.

     Sentei-me ao volante de meu jeep. Meio acabrunhado, olhando aquela lama negra, só pude dizer:

     - "Tadinho"!            

(COUTO, Welis. In "Memórias de um Parafuso". Editora Arte Quintal. Belo Horizonte)