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Minha palavra é noite,
às vezes é lua cheia,
às vezes minguante
-quase nunca nova
 
 

O PLANTADOR

Welis Couto

          

      Corria o ano de 2.028. No terreiro, ele lubrifica o trator enquanto espera as primeiras chuvas para preparar a terra para o plantio de soja. A graxa que escorria dos pinos untava-lhe as mãos que, de quando em quando, levava-as à testa para enxugar o suor. Vez por outra, um pino entupido redobra o trabalho: retirar o parafuso, limpar o pino e recolocá-lo. O sol da Bahia castiga-lhe a calva cabeça.

       Há algum tempo, trocara a vida na cidade, pelo campo. É certo que nenhuma saudade sentia do barulho das buzinas e dos escapamentos dos carros. Contentava-se em ver brotar o roçado e observar a soja crescer, pendoar, dar vagens e sementes. As coivaras da última plantação ainda atraíam as juritis, suas atuais companheiras no trabalho.

      Mais um pino entupido e o parafuso enviesado. Nada lhe dá jeito. A raiva parece subir-lhe à cabeça já quente pelo sol: - essa merda de parafuso!!!... – Esbraveja. E, ainda com jeito de raiva, vira-se para o colono que o acompanhava:

      - Pega o pingaço, bota o lombilho e empresta do compadre Jovelino a chave grifo. Vá à meia-rédea.

      O colono nada entendera daquele falar do gaúcho. Porém, vendo a cara enviesada do patrão, saiu de fininho pensando o que fazer. Chegou até a sede da fazenda e contou para a esposa do fazendeiro o que se passara. Ela, carioca de nascimento, porém muito acostumada com o jeito do marido, acalma-o reproduzindo o pedido na linguagem local:

      - Pega o campeiro, põe as tralhas e vai num pé e volta no outro até a casa do compadre Jovelino emprestar a chave de cano.

      O colono que não era da região, a custo pode compreender que era para arriar um cavalo bom e ir bem rápido pedir ao Jove que lhe emprestasse a chave inglesa.

      Esperando a chegada da chave, limpou a graxa das mãos, foi para casa e sentou-se em uma cadeira na varanda, esperançoso de que a chuva não tardasse, enquanto olhava pelo lado da estrada o sol batendo morrente em seu quintal. A tarde passava devagar.
Sobre a mesa de centro uma carta que o vizinho coletara no posta-restante do Correios e lhe entregara. A preparação das máquinas não lhe dera tempo para a leitura. Rasga o envelope com sofreguidão, olha o timbre do remetente, “Banco do Nordeste”, e lê rapidamente o escrito. Fecha-lhe o sobrolho:

     - Mas que porcaria é essa! – Gesticula e levantava-se revoltado, balançando a cabeça. A esposa que bem conhecia esses rompantes do marido sabia que não era raiva ou braveza o que ele sentia nesses momentos; mas sim, grandes arrufos de indignação.

      - O que foi amor? – Pergunta-lhe enfiando a cabeça pela janela da sala que dava para a varanda.

      - Banquinho de merda! Estão-me pedindo outra vez o comprovante de renda. Eu mesmo levei essa merda pra eles, no mês passado... – Falou com um jeito desiludido.

      Sentou, procurando-se acalmar. Voltou o olhar no tempo e reviveu fatos que trazia na memória. Também fora bancário! Tomara posse no Banco do Brasil há mais de 40 anos lá no Rio Grande. Como gaúcho desgarrado, além do bom emprego, era a oportunidade de correr mundo, desbravar fronteiras. Não tardou deixar o seu estado e dar vaza ao retirante. Viera o casamento, uma carioquinha de mãos habilidosas a tecer a arte colagem que se grudou nele para sempre. Os filhos não tardaram a chegar!

       Algum tempo depois, era transferido para a agência de Posse no Estado de Goiás, onde viu oportunidade de abrir fronteiras. Vendeu o pequeno sítio no Sul para ser fazendeiro na divisa de Goiás com a Bahia.

      O bancário se unia definitivamente à terra relembrando sua origem, para dela nunca mais se separar. Nem mesmo, a mudança para Brasília e os novos amigos iriam fazê-lo abandonar sua ascendência. Conjugou a amizade, muita, com as intermináveis viagens para Correntina, onde estava a propriedade rural. Enquanto a cabeça construía soluções cadastrais, os braços fortes abriam o cerrado.

      Relembrou os amigos. Eram tantos! Construiu-os no trabalho e nas impagáveis horas de lazer em que abria as portas de sua casa para os encontros da equipe, os churrascos à mão cheia feitos com o amor de uma família que adorava tudo o que fazia.

      Arrebanhou a admiração de colegas de todo o Banco, a reverência profunda dos companheiros de trabalho com quem repartia o seu saber como quem dá o pão ao filho. Ajudou a todos que o procuraram. Atravessou as fronteiras da diretoria para espalhar conhecimento por todas as áreas do BB.

      Esbravejou, indignou-se, arqueou-se e levantou ainda mais forte, consciente da fortaleza de seus conhecimentos e de sua bondade. Rocha das montanhas, rock mountains. Mas, também poderia ter-se chamado devoção.

      Tempo é passado! Onde andariam todos? Aposentados, a maior parte. Ainda trabalhando no BB, outros. Quem, como ele, ter-se-ia aventurado a comprar algum sítio ou mesmo uma pequena chácara? Com alguns, perdera contato. Ah! O tempo que corre para o nada! Porém, com outros, solidificara a amizade.

      Uma ponta de saudade apertou-lhe a alma.

      Nesse espaço de ternura, pensou no amor dos filhos. Formados, todos. Com doutorado na Alemanha, origem da família. Nesses momentos, crescia em seu olhar uma estrada infinita de amor.

      O cavaleiro apontou na estrada despertando-o de vez de seus pensares. Sentiu os primeiros pingos de chuva correr pela terra e os seus olhos molhados por dentro. Chegara o momento de preparar a lavoura! Levantou-se e antes que o colono apeasse, solicitou-lhe, sem se importar se trazia a ferramenta requerida, que campeasse a ovelha cinzenta e a carneasse.

      Enquanto isso, foi acender o fogo para preparar o churrasco da tarde.

                                                      *******************
                                 (Esta é uma estória fictícia, mas qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência).