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Minha palavra é noite,
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-quase nunca nova
 

O SANTO DE DUAS CARAS

Welis Couto


             Junho foi época de pular fogueira e comer broa de fubá. Foi! Coisas que vão ficando esquecidas...

            Percebi o quanto essa tradição está-se perdendo quando, na década de 1.990 fui morar em Alvorada do Norte, estado de Goiás. Em um dia de junho, ao sair do trabalho, vi no fundo das casas, pequenas fogueiras. O fato me intrigara. Por todas as ruas pelas quais eu passava, lá estava uma ou outra fogueira. Somente no dia seguinte vim saber: era dia de São João.

            O acontecimento levou-me a outro passado: o de minha infância. Tinha eu nove anos e morava no Sítio Grijó, município de Alvinópolis na zona da mata mineira. Como vizinho estava o povoado de “Quentassol” onde morava D. Angélica, popularmente conhecida como Angerca, uma velhinha com os cabelos mais brancos que paina de algodão, viúva há décadas e que tinha por tradição fazer a fogueira de Santo Antônio.

            O dia da festa era muito movimentado. Fechava-se a estrada e lá se acendia a fogueira que soltava labaredas para o céu e iluminava o terreiro da casa onde tremeluziam pequenas lamparinas alimentadas pelo azeite de mamona. Nesse dia, a boa velhinha servia café aos presentes, acompanhado de uma deliciosa broa de fubá que enchia uma canastra no meio da sala, forrada com folhas de bananeira.

            O ponto alto da festa era levantar a bandeira: um grande mastro de pau onde na sua ponta era colocado um quadro todo enfeitado com a imagem de Santo Antônio. Para colocar o santo no mastro, o chamado festeiro, D. Angélica convidava alguma pessoa influente da região, o que era motivo de muito orgulho.

            Dessa festa ficou-me a lembrança de um ano em que meus pais foram convidados para serem os festeiros. O costume dizia que o Santo deveria ser entregue ao festeiro com bastante antecedência, e este ficava responsável pela sua guarda e ornamentação. Cada festeiro queria apresentar o Santo mais bonito que o anterior, cobrindo a bandeira com fitas coloridas e vibrantes.

            Assim que minha mãe recebeu a imagem do santo, ela tratou de guarda-lo com muito cuidado no fundo do guarda roupa e ali ele repousou, protegido dos olhares curiosos, por vários meses.

 Até que chegou o grande momento! Faltavam dois dias para a festa de Santo Antônio. Minha mãe me chamou para ajudá-la a enfeitar o Santo. Com cuidado extremo, ela começou a retirar as coisas de dentro do guarda-roupa até que lá no fundo, pôde visualizar a imagem de Santo Antônio. Qual foi o seu espanto! Ela, quase sem voz, ainda conseguiu gritar pelo meu pai e dar-lhe a terrível notícia:

- Sozé, o santo... as traças comeram-lhe o rosto!

            Meu pai olhou assustado para o rosto desfigurado de Santo Antônio e não pensou duas vezes: pegou o cavalo e foi em marcha rápida para a cidade, em busca de nova imagem de Santo Antônio, enquanto minha mãe olhava desconsolada para a cara do Santo. Mais tarde meu pai retornaria, desanimado.

            - Não encontrei nenhuma imagem do santo desse tamanho. Só por encomenda!

            Sem santo, não haveria festa naquele ano. Minha mãe, pensativa, olhava para a metade da cara que sobrou de Santo Antônio. Teve uma ideia! Habilidosa na arte da pintura, ela pegou os vidros de tinta que utilizava para pintar toalhas e outros panos e começou a reconstitui o rosto do santo.

            Era um trabalho de artesão feito com mãos finas. Apesar de toda sua habilidade, buscando as melhores misturas das tintas, a imagem de Santo Antônio era muito velha e por melhor que ela trabalhasse, as cores que eram pintadas ficavam mais vivas que a imagem original.

            Ao custo, o trabalho foi concluído. Minha mãe fez o melhor que pôde, mas não evitou que o santo tivesse duas caras. Enfeitou-o com esmero cobrindo a bandeira com divertidas fitas coloridas, extremamente brilhantes, que quase escondiam a imagem multifacetada de Santo Antônio.

            Chegou o grande dia! A canastra coberta com folhas de bananeira não cabia mais tanta fartura! As broas de fubá se espalhavam também por outros balainhos, para alimentar os presentes. Eu só pensava no santo e no susto que levaria D. Angélica ao vê-lo tão diferente.

            Prepararam o mastro, que também estava todo enfeitado. Meus pais pegaram a bandeira de Santo Antônio, colocaram-na na ponta do mastro e ele foi hasteado. Ouviram-se muitas palmas e um canto em homenagem ao santo. Meu coração apertado, não me deixava pensar em outra coisa: como as pessoas não perceberam que o santo estava diferente? Seria porque estava escurecendo e elas não podiam ver direito a cara de Santo Antônio? A minha cabeça, pequenina, fervilhava de perguntas.

            Por vários dias, o mastro ficara ali, balançando-se ao vento até que em um determinado dia, ele não mais estava lá. Meu coração tremeu. D. Angélica haveria de descobrir que o santo mudara de cara...

            Os dias foram passando e nada acontecera! Talvez por humildade ou pela amizade, ela nada quisera falar para minha mãe. Até que, em uma manhã de domingo meus pais chamaram-me para ir à casa de D. Angélica. Pela tradição, os festeiros deveriam agradecer pela honra de terem sido escolhidos os patronos da festa. Eu tremia mais que vara de marmelo.

            Lá chegando, minha mãe pegou um pequeno embrulho, que logo soube, continha a nova imagem de Santo Antônio que meu pai encomendara. Entregou-a a D. Angélica e contou-lhe todo o ocorrido. A velhinha entrou em seu quarto e de lá retornou com a bandeira do santo.

Ela ficou por longo tempo olhando as duas imagens. Nós, em silêncio, observávamos aquela senhora de cabelos extremamente brancos, viúva há mais de trinta anos e que, desde a viuvez morava com sua única filha. Ela continuava a olhar para as duas imagens. Depois de muita reflexão, com um gesto delicado, Angerca, como sempre fora conhecida, devolveu a imagem novinha do Santo casamenteiro para minha mãe e falou com um sorriso vitorioso no rosto.

            - Vou ficar com esse velho Santo Antônio. O desenho da senhora ficou muito bom e, na verdade, eu acho que esse Santo tem mesmo duas caras!